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quarta-feira, 6 de junho de 2018

A melancolia de Wal

Prelúdio: decidi postar este texto de Horta devido a singular e emergente vida de milhões de brasileiros que, como heróis e heroínas, resistiram as humilhações e opressões de uma sociedade excrescente e de uma política de Estado sem Ética.
 
 
 
Fernando Horta

Quando cheguei em Brasília para fazer mestrado na UnB, vim de "mala e cuia", como se diz na minha terra. Vim com filhos e minha avó, que na época ainda era viva e necessitava de cuidados 24 horas, pois tinha esquizofrenia e tinha tido as pernas e as mãos inutilizadas por ação de filhos ganaciosos. O tempo que eu tinha dava banho e a levava até ao banheiro. Mas, precisávamos de uma pessoa para nos ajudar.

Foi quando encontramos a Wal. Wal tinha já mais de 40 anos e estava desempregada. Era do nordeste e morava em Brasília há mais de 25 anos. Tinha dois filhos que estavam em escola pública e por quem, depois aprendi, Wal dava literalmente o sangue. Wal era meu braço direito, tornou-se amiga e parte daquele esforço de sobrevivência. Wal tinha perdido o emprego fazia quatro meses. A outra "patroa" a havia proibido de comer enquanto fazia o serviço. Wal me contou que ela estava quase desmaiando por pressão baixa e comeu uma banana, pelo quê foi ofendida e repreendida como "muleca". Wal não aguentou e respondeu. Foi demitida.

Quando contratei Wal, gastei alguns meses convencendo-a a assinar sua carteira. Com mais de 30 anos de trabalho (25 anos só em Brasília) tinha uma carteira de trabalho em branco. Tentou me convencer a pagar para ela o valor do inss e outros encargos. Disse-me que o "Pastor" tinha dito que assim era melhor. Wal ia usar parte disto para pagar a Igreja. Não vou entrar na discussão do mal que causam estas igrejas e como roubam das pessoas mais pobres. Meu problema era a Wal. Ameacei de demissão, caso ela não aceitasse a carteira assinada. Fiquei dois dias em pânico dela não aceitar e eu perder uma pessoa honesta, capaz e tão correta. No final Wal aceitou.

Eram tempos finais de Lula e o país ia bem. Podíamos pagar e o salário dela era reajustado. Wal sonhava que seus meninos iriam para a faculdade. Conversávamos diariamente. Eles tinham futuro. O Brasil tinha futuro. Eu tinha presente. Wal tinha trabalho. O governo tinha planos e carteiras assinadas recolhendo impostos.
Em 2014, Wal começou a faltar ao trabalho alegando dor de cabeça e desmaios. Insisti para que fosse ao médico. Foi e não acharam nada. Continuou faltando ao trabalho, com desmaios até na parada de ônibus.
Levaram de emergência a um hospital, fizeram tomografia (que em seis meses nenhum médico havia pedido) e constataram o pior. Wal tinha um tumor do tamanho de uma laranja na cabeça. Precisa operar, precisava parar de trabalhar para lutar pela sobrevivência.

Graças aos governos do PT e a um gaúcho de esquerda que foi para Brasília, Wal pode receber auxílio saúde. Depois evoluiu para aposentadoria por incapacidade. Não fosse por Lula, aquela nordestina que trabalhava desde os 10 anos para gente rica e branca teria ficado morrendo à míngua.

Vejam a importância das políticas sociais de um governo.

Veio o golpe. Veio Temer.

Com a redução nos investimentos em saúde, Wal não pode ter na velocidade e no número a quimioterapia e a radioterapia que precisava. Os tumores voltaram e outras operações foram feitas. Pior, com as "auditorias" de Temer, Wal foi classificada como "possível fraude" ao sistema de seguridade pois tinha 40 e poucos anos, contribuído apenas 3 ou 4 e estava aposentada. Temer cortou a aposentadoria de Wal por quase seis meses até "perícia extraordinaria". Wal passou necessidade. Não tinha dinheiro, nem conhecimento para advogados desfazerem aquele absurdo. Os absurdos de um governo neoliberal contra os pobres, para "diminuir números", ficam sempre impunes. Wal me pediu ajuda para fazer rancho, eu já estava apertado. Os tempos do golpe e da crise de Temer já se faziam sentir. Ajudei como pude. Me contaram depois que aquela guerreira nordestina, forte e orgulhosa que eu conheci, passou a pedir ajuda aos vizinhos para poder comer. Uma perícia teve a cara de pau de dizer que Wal estava "parcialmente apta" ao trabalho, não podendo fazer força. Falei com Wal ao telefone e depois pessoalmente. Ela chorava por não conseguir se expressar. As operações lhe haviam deixado sequelas e apesar de usar um lindo turbante para esconder a falta de cabelos, a gente via como um governo canalha e desonesto havia quebrado a vontade de Wal. Os tumores voltavam, ajudados pelo pequeno número de sessões de quimio e rádio. Wal precisava fazer outra operação. Não havia agenda. Os médicos se multiplicavam para dar conta da precarização de Temer. Atrasaram a operação em alguns meses. O tumores eram agressivos. Quando Wal foi restituída para receber a aposentadoria, após duas outras perícias atestarem a sua incapacidade, os atrasados não foram pagos. Wal precisava entrar na justiça. Assim age um governo neoliberal. Coloca barreira na frente de barreira para fazer com que o cidadão pobre não receba o seu direito.
No final do "exercício", algum tecnocrata canalha vai usar o direito não pago de Wal e de milhões de outros como propaganda de "boa gestão", de "redução de custos". Algum senador desonesto e cafajeste vai usar Wal como número para mostrar como "mamam no Estado".

Finalmente, Wal vai operar novamente. Me disseram que os médicos deram poucas chances de sobrevivência. Se sobreviver vai ficar com sérias sequelas. Para mim, a imagem de Wal que quero reter é a Wal do governo Lula, que na sexta feira fazia piada comigo dizendo que ia ao forró "viver a vida". Dizia que gaúcho não sabia o que era de bom um "forró" e emendava um "oxente" de orgulho e com uma força que só mulheres negras, solteiras e mães sabem o tamanho.

Não falei propositadamente dos maiores amores de Wal. Três filhos. Um mais velho de quase 25, um de 18 e um de 16. Enquanto ela ajudava a cuidar dos meus filhos - com um amor de impressionar - me contava tudo sobre os dela. Ralhava com eles no celular. Cobrava as aulas, as lições. Dei aula no colégio que eles estudavam. Wal me perguntava sobre os professores, sobre o "ambiente". "Minha mãe era empregada doméstica, eu trabalho com limpeza e faxina, mas estes meninos vão estudar e ser gente", dizia ela. Mal sabia
Wal que eu a achava "gente", mesmo que ela se colocasse fora deste grupo. Era o Brasil do PT. O Brasil que quebrava as correntes da pobreza e a prisão do imobilismo social. Eu sabia tudo "daqueles meninos". Wal lutava como uma leoa por eles.

Com Temer, o mais velho está há dois anos sem emprego, os mais novos largaram o colégio e hoje estão nos pequenos crimes e nas drogas. Quando a aposentadoria de Wal foi cortada, eles foram empurrados ainda mais para os braços do crime. Sem dinheiro ou comida em casa, eles tiveram que "se virar". "Se virar" como todo negro jovem, morador de periferia e com pouco estudo no Brasil se vira. Um dia (e eu rezo para que não) algum policial ou "homem de bem" vai dar-lhes um tiro e se vangloriar por ter "matado bandido". Eles já viraram estatística para o governo Temer. Tal qual Wal virou. Estatística para aprovar intervenção, para fazer ppp para construir presídio e para colocar a classe média contra os pobres. Wal, muito provavelmente, não vai ver o destino dos seus filhos, mas eu li em seus olhos, na última vez que a abracei, que ela sabia que tinha perdido a luta. Eu vi como um governo neoliberal acabara com aquela nordestina que tanto me ajudou e por quem eu tanto tenho apreço. Eu vi como um "gestor" mata. Duas gerações. Eu vi como as panelas trouxeram "o Brasil de volta". E eu não perdoo estes canalhas.

A história de Wal é a prova de como um governo dá esperança e condições de vida (lula e dilma) e como tira e destrói as pessoas (Temer). A Wal que marcou a minha vida e a de meus filhos é a Wal pela qual eu luto. Era o símbolo de um país orgulhoso e com futuro, que as panelas e as camisas da seleção transformaram em "vagabunda e aproveitadora".

Não vão conseguir devolver Wal. Não vão conseguir devolver o futuro dos filhos dela. Não vão conseguir tirar a minha dor de ter visto esta história de perto.

Fora Temer é pouco. Por mim, Temer e todos os seus apoiadores morreriam como estão deixando Wal morrer.
Fora Temer é pouco. É preciso Lula presidente.
E eu prometi que iria conhecer um forró com Wal. Eu vou Wal, eu vou. Depois que arrumarmos esta merda toda, eu vou. E você vai estar comigo. Você já é parte de mim. Parte da minha luta.

Muito obrigado, por tudo. "Óxente"!

domingo, 1 de abril de 2018

Páscoa e a Redenção dos Invisíveis




          A invisibilidade de Jesus Cristo na noite do Getsêmani perante Deus Pai fora uma das mais aterrorizantes e desesperadoras horas vividas por Ele. Fora o momento crucial para que Ele se tornasse homem. Ele experimentou na carne a desolação, o abandono e ausência do Absoluto. Deus se fizera presente em seu silêncio ensurdecedor e sem precedentes. Nem na saída do povo hebreu do Egito conduzido por Moisés essa demonstração ocorrera; nem tampouco com Abraão quando aceitara imolar seu filho Isaac; mas para o filho amado Ele tivera que se tornar ausente. A melancolia vivida pelo Cristo se tornara o vazio mais profundo do seu Ser. Ele pensara em não poder mais experimentar a presença plena de Deus.
A redenção de Cristo não tivera sentido se Nele não se manifestasse a dor da ausência, da rejeição, da solidão e da indiferença, a maior e mais estonteante experiência humana de exclusão que a moral humana consegue atingir, mas não a Ética. Nzambi/Olorum fora antiético!!!??? Assim como bem afirmara Albert Camus: “Sua grandeza é sua inconseqüência. Sua prova é sua inumanidade”. Igualmente para seu Filho não devera revelar-Se como presença. Mais adiante, quando de sua crucificação no Gólgota, escuta do bom ladrão: Eloi, Eloi, lamá sabactani’, ‘Meu Deus, por que me desamparaste?’. Sem o aparente abandono de Deus a redenção não tem sentido. Todo iniciado em algum momento da jornada iniciática sente a falta de fé e da experiência do abandono.
Redimir é refazer a ponte fragmentada entre a aldeia e a cidade; entre a parte e o Todo. Jesus Cristo se não tivera a experiência do exílio da dor da ausência não pudera com sua crucificação ter redimido toda a humanidade representada por todos aqueles que contribuíram com a reconstrução da ponte. Haja vista que esse sempre foi e será a função do herói. De Ulisses à Marielle Franco a heroicidade auxilia que todos igualmente possam chegar à Ítaca passando pela ponte.
Assim ocorrera recentemente com os heróis invisíveis de nosso país elencados a seguir por Fernando Horta:
Paulo Sérgio Almeida Nascimento 13/03/2018 – líder comunitário no Pará – assassinado; Márcio Oliveira Matos, 26/01/2018 – líder do MST na Bahia – assassinado; Leandro altenir Ribeiro Ribas, 19/01/2018 – Líder Comunitário no RS – assassinado; Jefferson Marcelo, 04/01/2018, Líder comunitário no RJ – assassinado; Carlos Antonio dos Santos (carlão), 08/02/2018 – líder movimento agrário Mato Grosso – assassinado; José Raimundo da Mota de Souza Júnior 13/07/2017 – líder quilombola/MST bahia – assassinado; Eraldo Lima Costa e Silva, 20/06/2017 – líder MST Recife – assassinado; George de Andrade Lima Rodrigues, 23/02/2018 – líder comunitário Recife – assassinado; Luís César Santiago da Silva (“cabeça do povo”), 15/04/2017 – líder sindical Ceará – assassinado; José Bernardo da Silva, 27/04/2016 – líder do MST Pernambuco – Assassinado; Paulo Sérgio Santos, 08/07/2014 – líder quilombola na Bahia – Assassinado; Rosenildo Pereira de Almeida (Negão), 08/07/2017 – líder comunitário/MST – Assassinado; Jair Cleber dos Santos, 24/09/2017 – líder movimento agrário Pará – Assassinado; Simeão Vilhalva Cristiano Navarro, 01/09/2015 – líder indígena Mato Grosso – Assassinado; Fabio Gabriel Pacifico dos Santos (binho dos palmares), 19/09/2017 – líder quilombola Bahia – Assassinado; Valdenir Juventino Izidoro, (lobo), 04/06/2017 – líder camponês Rondônia – Assassinado; Almir Silva dos Santos, 08/07/2016 – líder comunitário no Maranhão – assassinado; José Conceição Pereira, 14/04/2016 – Líder comunitário Maranhão – Assassinado; Waldomiro costa Pereira, 20/03/2017 – Líder MST Pará – Assassinado; Valdemir Resplandes, 09/01/2018 – líder MST Pará – Assassinado; Clodoaldo dos Santos, 15/12/2017 – líder sindicalista sindipetro RJ – assassinado; João Natalício Xukuru-Kariri, 19/10/2016 – líder indígena Alagoas – Assassinado; Edmilson Alves da Silva, 16/02/2016 – Líder comunitário alagoas – Assassinado; Agora foi a vereadora Marielle Franco. Assassinada.
Comer o cordeiro da Páscoa, como fizera os hebreus antes de partirem em direção à Terra Prometida é celebrar a libertação de um povo que houvera sido escravizado.
Nosso país – Brasil está ainda sob o jugo da elite dominante e nosso povo bem como nossos heróis sendo levados ao matadouro como ovelhas para serem imoladas. Continuar-se-ão as mortes e os assassinatos, mesmo que um desses heróis seja ex-presidente; vereadora; líderes indígenas; líderes comunitários; líderes quilombola e professores. Contudo, uma coisa se lhes escapa no âmbito da mística histórica: essas ovelhas imoladas são representativas do cordeiro de Deus que se fez homem e habitou entre nós.
Os invisíveis de nosso Tempo comemoram a Páscoa sozinhos, na experiência melancólica do que fora Absoluto em um dado momento. São vistos apenas no encontro do Face-a-Face do deserto em que não há chocolates nem coelhinhos. Nem mesa farta de um banquete extramundano onde o Outro absolutamente Outro não tem lugar na mesa porque está sujo, Imundo (sem mundo), doente, exilado, sem voz à espera que um de nós se pronuncie em sua defesa. Camus, ao receber o prêmio Nobel de Literatura em 1957, discursara: é preciso que sejamos o porta voz da humanidade sem voz.
Meus sinceros votos de Páscoa são para que haja mais pessoas que possam celebrá-la junto com os Invisíveis.
Ilha de Itaparica, Páscoa de 2018
Meursault Babalaxé

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O Amor da Justiça e a Inalcançabilidade do Outro na Filosofia Mística da Melancolia




 (...) tenho de responder por outrem sem me ocupar da responsabilidade dele para comigo. Relação sem correlação ou amor do próximo que é amor sem Eros.
(De Deus que vem à idéia, E. Lévinas)

A força de Eros representada na mitologia grega quando partícipe das potestades criadoras juntamente com Kaos, Géia e Tártaro, apesar de estéril, é a energia mais descomunal para garantir que a matéria permaneça unida. Por analogia, seria a energia atômica que garante a junção dos prótons com os neutros para que a matéria seja viva e possa evoluir. Quando de sua dispersão provocada pela explosão nuclear desencadeia a mais tenebrosa e devastadora reação em cadeia do universo cósmico. O homem aprendeu pela via da ciência a manipular essa força dispersora quando engendrou a bomba atômica. Contudo a força originária cósmica recupera em segundos a reunião da matéria com a sua energia vital. Todavia, as conseqüências no espaço/tempo são avassaladoras e deixam seqüelas irreparáveis na natureza e no homem. Outrossim, a responsabilidade ética perante Outrem deve estar presente como a priori no seio das ciências e das relações humanas sem se preocupar ou esperar uma reciprocidade dele para comigo, como bem afirma Lévinas em sua obra De Deus que vem à Ideia. Diferentemente de Eros que expecta a mutualidade, o amor da marca indelével da ancestralidade e da atualidade percebido pelo rosto do outro no encontro da face-a-face, desencadeia a justiça que proporciona o Outro a ser além da ontologicidade em que a relação se restringe apenas entre o Ente e o Ser. É o amor sem concupiscência. Obtivemos uma falta de responsabilidade por Outrem “como princípio de individuação humana é talvez, parafraseando Lévinas, que Deus ajuda a ser responsável. (...) mas para merecer a ajuda de Deus, é necessário querer fazer o que se impõe fazer sem sua ajuda”.
Lamentavelmente, em nossos dias atuais o “querer fazer sem ajuda de Deus” fora do ateísmo salutar, potencializou-se o contrário: toda a responsabilidade do agir moral está atrelada a participação de Deus, haja vista o que se comete em nome Dele e supostamente com Sua ajuda. O Talibã e/ou o Estado Islâmico anunciam suas atrocidades e seus assassinatos públicos fazendo explodir prédios por meio de homens bombas ou jogando automóveis em meio a multidões em diversas partes do mundo em nome de Alá, quando, antes de se sacrificarem, gritam: Alá é Grande.
Similarmente, os neo-evangélicos oriundos da Igreja Universal criada pelo magnata bilionário Edir Macedo que se propagaram por todo o continente latino-americano, agem da mesma forma. Em nome de Jesus Cristo e de uma doutrina evangélica completamente distorcida, difundem à seus fiéis seguidores alienados a homofobia, a transfobia, a demonização do simbólico, a invasão aos terreiros de candomblé e umbanda, a perseguição aos filhos e filhas de santo, aos Babalorixás e as Yalorixás, a negação de Deus verdadeiro e de todos os santos, de todos os Xamãs, dos curandeiros e das curandeiras, dos Pajés indígenas, do espírito das águas, das montanhas, das entranhas da Terra, das benzedeiras, das baianas de acarajé. Optaram por negar e execrar as tradições de seu próprio povo donde herdaram a sabedoria, a fé oculta nos mistérios da natureza, da vida e da morte. Abominam o vinho e toda sorte de bebida que contenha álcool e todo tipo de comida de santo que contenha dendê. Contudo, praticam a profanação do que deve ser preservado como sagrado, propagam em público nos transportes coletivos e nas praças públicas heresias e cometem sacrilégios sem dó nem piedade. Elegem vereadores, deputados e prefeitos corruptos sem nenhum traço ético e, atualmente, preparam-se para eleger o presidente da República do Brasil. O liberalismo capitalista insano e antiético se regozija com essa expansão de um povo alienado tornando a moral cristã burguesa sua plataforma por excelência. A moral com sua força estonteante detona e ofusca todo tipo de comportamento ético. Albert Camus ao escrever uma das maiores e grandiosas obras da literatura universal do século XX – O Estrangeiro denuncia a supremacia da moral em detrimento da Ética ao demonstrar no julgamento do protagonista Meursault o quão os membros da justiça e a igreja da época representada pelo capelão do presídio não tinham a menor preocupação com a morte do Árabe cometida por Meursault, mas, sobretudo, pela supervalorização dos costumes morais que se deve chorar no velório de um ente familiar, principalmente da mãe. Aquela da Argélia e essa nossa sociedade fortificam-se pela égide da lei jurídica e dos mores culturais.
A justiça é divina por excelência, desde o mito grego até a chegada dos Orixás e dos Inkisis e da Mama África. Xangô, o deus da Justiça, garante espiritualmente a efetivação da justiça no meio humano, mas não materialmente, como se costuma apregoar. É preciso aprender a praticar a justiça no devir da existência, heraclitianamente pensando; aprender a se deixar levar pela sophrosyne do ponto de vista aristotélico; reconhecer e acolher o Outro semelhante em raça, em etnias e em espécie como afirmara metafisicamente Emmanuel Lévinas em sua filosofia da alteridade. A razão moderna habita sob o alpendre da existência. Não sobe no telhado. A metafísica do ser do Outro está em cima do telhado, daí precisar-se-á de uma escada que nos conduza a chegar até lá. A filosofia é a única ciência que conduz o homem a subir até a esfera do Ser como tal onde se encontra, igualmente, a Justiça que é a Ética e somente aí o Outro pode ser alcançado. Logo, devido a inalcançabilidade do Outro por conta da limitação do pensar, do reducionismo das ciências, da super valorização da moral o Outro sempre é reduzido ao Mesmo e a repetição memorial se impõe a cada dia em todos as esferas dos relacionamentos humanos.
É preciso aprender a morrer; é necessário aprender a esquecer para que o novo brote do solo das consciências como a semente que precisa cair na terra para morrer e depois nascer (João-12,24-25 = Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto. Quem ama sua vida a perde e quem odeia a sua vida neste mundo guardá-la-á para a vida eterna). Dever-se-á entrar no reino de Plutão e de Omolú para que Deméter e Nanã efetuem a passagem da semente velha para a semente nova. Sem se deixar cair na terra a semente da existência continuará velha, sozinha e fenecerá. Dever-se-á acolher os refugiados do absurdo, eles nos conduzirão à morte de nossas idiossincrasias, de nossas indiferenças e permitirão que se venha conhecer novos hábitos, novos tipos de alimentação de grãos, peixes, carnes, legumes, coalhadas de leite, novos tipos de bebidas e de queijos, novas maneiras de meditar e de acolher, novos tipos de dança, novas formas de cura com remédios caseiros. É mais do que necessário que as fronteiras de todos os países sejam liberadas; que todos os muros assim como foi o de Berlin da Alemanha pós-nazista sejam derrubados. Faz-se urgentemente necessário que as cordas dos blocos carnavalescos da cidade do Salvador que protegem a burguesia zumbi, decadente, colonialista e preconceituosa sejam retiradas; é preciso restaurar a verdadeira democracia do voto livre nas eleições políticas, mesmo sabendo que o TRE sofrerá um baque descomunal de receitas extravagantes para manter seus desembargadores, juízes, advogados e funcionários de carreira; é preciso que o Portal da Transparência Brasil contenha dados de remuneração dos servidores da Justiça e do Legislativo; é preciso que se faça uma auditoria de caráter de preservação das instituições que realmente prezam pela verdadeira formação profissional de nossos jovens estudantes e o não favorecimento do capital estrangeiro que cada vez mais entra no país sob a pretensão de compra e revitalização das faculdades e universidades privadas; é preciso estancar o sucateamento das Universidades e das Escolas Técnicas federais; é preciso que a farmacologia abra espaço além da alopatia, também para a homeopatia e para os remédios caseiros oriundos das tradições indígenas, dos caboclos e das rezadeiras; que se restaurem os banhos de assento e de folhas de Ossanhã; que seja obrigatório para todos os cidadãos brasileiros cumprir a formação de ensino fundamental condicionado ao recebimento de bolsa família, do seguro defeso e do salário mínimo; que as instituições religiosas responsáveis pela educação e formação de crianças e jovens de todo país paguem os devidos impostos ao Estado e abram cotas significativas em todos os turnos de ensino para os excluídos; que os professores de ensino fundamental e médio possam ter acesso a pós-graduação de modo diferenciado e recebam salários pela isonomia dos professores doutores das Universidades Federais; que os vereadores de todos os municípios do Brasil recebam salários simbólicos e passem a trabalharem como todo cidadão empregado com carteira assinada e cumprimento de todos os direitos e deveres dos operários.
A tarefa política de transformar um país numa democracia requer que suas autoridades públicas tornem-se e vivam como cidadãos; que recusem auxílio moradia, carro oficial, dezenas de assessores, viagens em aeronaves do governo incluindo familiares e amigos.
Dizia S. Tomás de Aquino que a Política é infinitamente mais importante que a Filosofia. Mesmo porque, a Filosofia em sua maioria ensinada nas academias filosóficas das Universidades não passa de pura especulação. Desse modo ela é estéril e não se habilita a nada, nem a ensinar a pensar. Seus interlocutores permanecem no senso comum, pois falta-lhes subir na escada e andar no telhado da metafísica em que se pode vislumbrar não somente o Ser como Tal, mas igualmente o Outro. Pois o rastro deixado por ele no mundo da existência, como afirmara Lévinas, dirige-se a anterioridade da anterioridade, ou seja, à origem da origem, quando tudo começou e onde o Outro revelou sua face. Concernentemente, a força de um povo está em suas tradições.
A negação e a indiferença perante o Outro faz do homem moderno contemporâneo das cidades em todo o mundo um ser alienado, tosco, efêmero, solitário, líquido, vazio de mistério, conseqüentemente de sagrado, tecnologizado, repetitivo, estereotipado, religioso sem mística, depressivo e triste. A única e soberana salvação estaria na melancolia sem cura onde se experimenta o Absoluto da Natureza e doravante se sente saudade. É na verdadeira melancolia que o Bispo do Rosário teceu em mantos sua experiência de revolta contra a instituição manicomial do Rio de Janeiro durante 50 anos. Foi na obscuridade melancólica que Camille Claudel ao transformar em escultura de pedra e barro uma das maiores obras artísticas em França do século XX competindo com Rodin seu mestre e amante. Foi na experiência da La noche Oscura que São João da Cruz um dos maiores místicos da cristandade ocidental escreveu poemas de profunda melancolia sobre a Noite e a chegada do Dia.
É na vida dos andarilhos melancólicos acompanhados de seus cães que Omolú e São Roque, Obaluayé e São Lázaro caminham pelo mundo, mancos, feridos, com fome, sem teto, sem nenhum tipo de acolhimento nem de compreensão que se mostra a simplicidade da existência em que o conhecimento filosófico e científico cede lugar à verdadeira sabedoria. Saturno é o seu planeta, azul é a sua cor, a mística é a sua religião, a generosidade é a sua esmola enquanto desfrutam de Del em Del o cenário magnífico das entranhas da Terra, dos picos e sopés das montanhas, dos vales e dos rios de Oxum, dos mares de Yemanjá, do reino dos mortos de Omolú e Yansã.
O Outro se torna alcançável quando se pode olha-lo de frente através do face-a-face no deserto; aquele que não aprendeu a viver no deserto da melancolia jamais saberá nem sentirá a força da natureza embutida em todas as árvores e animais. Em todos os córregos, riachos e rios. Aprender a viver no deserto é deixar de lado o excessivo vício de postagens imbecis e medíocres nas Redes Sociais da Internet, no acesso contínuo às mensagens do WhatsApp ao lado do Outro que aguarda uma  interlocução. Experimentar o deserto é escutar uma boa música que ajude ao espírito à transcendência.  Deixar que o deserto se revele é não permitir que a lei jurídica seja superior à Ética; é questionar os ditames da razão em detrimento da inteligência filosófica; é denunciar as ciências que manipulam genes humanos em favor do surgimento futuro da eugenia; é tornar público o nome dos cientistas que fabricam ogivas nucleares; é mostrar ao mundo o assassinato de golfinhos e baleias que ocorrem na baia de Taiji no Japão; é assinar petições contra a extração de barbatanas de tubarões para servir em sopas de restaurantes asiáticos, a China é o maior mercado consumidor de barbatanas do globo. Estima-se que 80% das barbatanas pilhadas no mundo vão para Hong Kong (o maior centro desse comércio), onde são distribuídas para o restante do país e da Ásia; é propagar e pedir que se acabe o extermínio dos Curdos sem pátria; é acolher em nossas cidades os refugiados de toda parte permitindo-lhes que a sua dignidade de pessoa humana seja restaurada e o direito à vida, ao trabalho, à moradia e aos estudos sejam-lhes garantido.
Em sua obra polêmica e devastadora das hipocrisias liberais e socialistas O homem revoltado (1951) Albert Camus afirma: “Eu me revolto, logo existimos”. A partir da revolta o homem se torna cidadão do mundo e solidário; a partir da revolta de muitos cidadãos nasce a Revolução da Diversidade em que o Mesmo hegeliano cede lugar ao Outro.

Ilha de Itaparica, Carnaval de 2018

Meursault Babalaxé



sexta-feira, 15 de setembro de 2017

As Gameleiras de Tempo de Nosso Senhor de Vera Cruz







No dia 14 de setembro dia de Nosso Senhor Jesus Cristo de Vera Cruz, celebra-se na Ilha de Itaparica, nas ruínas da igreja construída em 1560, o dia da verdadeira (daí Vera) simbiose da Natureza (incutida na Gameleira) com o templo cristão católico em simultaneidade com o sincretismo religioso das religiões de matriz africana. Quem ainda não visitou essas ruínas, aconselho de fazê-lo com o espírito aberto para, desse modo, perceber a força estonteante do que a natureza é capaz de fazer na preservação do mistério do sagrado embutido na vida desse planeta.
Na condição de leitor e pesquisador quando lá estive pela primeira vez em 2004 a lembrança que guardo até hoje é a de que me paralisei; quase não conseguia adentrar ao templo, ali eu vi a casa de Tempo abraçando o Sagrado na sacralidade das paredes da igreja. Uma das coisas mais impressionantes é a de que os ramos de uma gameleira centenária perpassam as paredes de dentro e de fora como se fossem sustentáculos salvaguardando a ancestralidade da Ilha de Itaparica vivida nas tradições dos Tupinambá.




Eu, na condição de filho de Omolú Tempo (ato tô, meu Pai) ao vir residir nessa ilha sagrada, a chamado de meu pai, fui percebendo e compreendendo ao longo do tempo porque a Baía de Todos os Santos, acrescentando-se o seu recôncavo reconvexo, possui uma das maiores e profundas forças espirituais da América Latina. Em comparando com Machu Pichu, um dos santuários mais importantes do mundo, essa ilha é infinitamente superior em espiritualidade ainda atual, pois Machu Pichu esvaziou-se do sagrado devido ao fato de não se celebrar e efetuar oferendas às divindades, mesmo à grandiosa Pacho mama, desde a chegada dizimadora e escarnecedora dos exploradores espanhóis, dito colonizadores.
No entanto, felizmente, ainda nessa baía, celebra-se, reverencia-se, festeja-se, dança-se o samba de roda, bebe-se loucamente como filhos de Tempo, haja vista que no povoado de Baiacú onde estão as ruínas da igreja de Nosso Senhor de Vera Cruz, todas as segundas feiras, dia de Exú [larô Exú] e de Obaluaiê [a tô tô, meu pai] seus habitantes, constituídos em sua maioria de pescadores, não trabalham, contudo, passam todo o dia bebendo dionisiacamente diante dos mangues de Nanã (a grande mãe que habita na lama de onde nascem e crescem todos os mariscos, siris e caranguejos que são vendidos na ilha e em Salvador. É igualmente nessa baía recôncava/reconvexa que existem os terreiros de Candomblé mais poderosos e profundos nos fundamentos das tradições dos Orixás/Ynkisis, dos Caboclos, Boiadeiros e Índios do continente Latino Americano.




Se “a força de um povo está em suas tradições”, parafraseando o agramático professor de filosofia da Universidade Federal da Bahia, sua anversidade, representado nos assassinatos dos símbolos pelos evangélicos, põe-nos, numa responsabilidade ética, histórica, política e fundamentalmente mística, de que não podemos nos imiscuir dessa avassaladora onda pan proselitista de um fenômeno execrável dito religioso.  Por analogia, note-se o que está acontecendo na Coréia do Norte pelas mãos insidiosas e satânicas de Kim Jong-um que, após de ter assassinado todos os seus mitos, símbolos e cultos da sua ancestralidade, pode armar-se sob a égide de Satã e da Ciência para provocar uma possível aterradora guerra nuclear.
Eis o maior perigo dos evangélicos em nosso continente, o de assassinar ininterruptamente nossas tradições através da demonização da Simbólica do Mal.

Que Nosso Senhor de Vera Cruz, dê-nos o devido discernimento e nos proteja, Amém.

Ilha de Itaparica, 14 de setembro de 2017.

Meursault
Refugiados do Absurdo